Apocalipse nos Trópicos acerta o alvo, mas erra a profundidade
Apocalipse nos Trópicos, estreado na Netflix, empreende um olhar cinematográfico sofisticado, mas também limitado. A obra de Petra Costa talvez seja mais um documentário de uma elite progressista feito para si mesma do que um olhar acurado dos motivos dos evangélicos na política.
Petra encena imagens fortes da prática cristã e logo adentra os bastidores do lobismo do pastor Silas Malafaia. Seu olhar narrativo busca compreender os evangélicos na política, mas ainda ecoa os vícios de uma esquerda lustrada, que crê desarmar ideologias ao expor os excessos dos poderosos e anunciar, com isso, a libertação dos oprimidos.
Ao posicionar Malafaia como personagem central, Petra apresenta muito bem um pastor carismático, sedento por poder e profundamente consciente de sua influência política. Com acesso privilegiado, o filme expõe sua performance privada e pública, confirmando-o como um dos principais lobistas do país. Vemos então um líder religioso em ação, mobilizando parlamentares e conduzindo bastidores de negociações com uma naturalidade perturbadora.
O filme acerta ao tratar a polarização entre Bolsonaro e seus inimigos por meio da chave da leitura apocalíptica. É uma aposta inteligente, porque toca num imaginário teológico-político que estrutura o engajamento bolsonarista, especialmente entre os evangélicos. Mas o documentário perde potência ao tentar explicar a complexa relação entre religião e política que ajudou a formar o público mais fiel a Jair Bolsonaro: os evangélicos conservadores.
Ao abordar o discurso religioso da guerra entre o bem e o mal, o filme se apoia fortemente no livro do Apocalipse como matriz simbólica da retórica bolsonarista. E o faz reduzindo a pluralidade do imaginário evangélico a uma leitura escatológica simplista, ao ignorar outras dimensões do engajamento político evangélico.
E vou além: alguns críticos, ao apontarem erros teológicos da diretora sobre o Apocalipse, deixam de perceber que não se trata apenas de como Petra interpreta a Bíblia, mas de como o imaginário apocalíptico modela o desejo de muitos evangélicos (inclusive católicos) por uma guerra entre o bem e o mal em que seus líderes políticos são revestidos de missão messiânica. Ou seja, o imaginário evangélico e bolsonarista se nutre de algo maior que a narrativa do livro do Apocalipse: o apocalipsismo.
Nesse ponto, Petra falha junto com alguns de seus críticos. Em pesquisas com o linguista e teólogo Fagner Carvalho, temos mostrado como certas polêmicas revelam uma forma de interpretar a realidade, moldada por uma memória discursiva apocalíptica que remonta à destruição de Jerusalém em 587 a.C., passa pelo Livro dos Vigilantes e pela revolta dos Macabeus, até culminar numa teologia pré-cristã messiânica.
Da modernidade para cá, esse anseio alimentou teologias políticas à direita e à esquerda. No Brasil recente, foi assumido pelo bolsonarismo como espécie de religião política em seu intento de um nacionalismo cristão: Bolsonaro tornou-se “messias” anticorrupção, anticomunista e protetor dos “valores cristãos”. Assim, esses valores herdados da hegemonia católica fundiram-se ao ressentimento, e a salvação divina ressurgiu agora nas urnas através da manipulação de símbolos religiosos para conquistar votos.
Mas o filme não faz uma pergunta importante: por que tantos evangélicos, inclusive os que não seguem Malafaia como presbiterianos, metodistas e batistas, continuam reconhecendo na guerra do bem contra o mal uma linguagem politicamente legítima? A resposta exige mais do que denúncia. A articulista Deborah Bizarria, ao tecer críticas ao filme, afirma que “não basta apontar as crenças; é preciso entender como o discurso religioso é usado para ganhar legitimidade e influência”. Sim, a cineasta tenta caminhar nessa direção, mas sua câmera revela mais dos filtros de sua bolha progressista que a maneira como parte dos evangélicos dão legitimidade à ultradireita.
O filme acerta ao mostrar com imagens fortes a influência de figuras como Malafaia e da Bancada Evangélica, mas tropeça ao tratar suas teologias de domínio como chave única da mistura entre política e religião. A vontade nacionalista cristã se alimenta de necessidades e sentimentos reais, não apenas de manipulação pastoral. Ignorar isso é continuar falando sobre os evangélicos sem escutá-los de verdade.
Veja o documentário. Mas há algo mais subterrâneo no modo como fé e política se entranham na vida dos fiéis comuns: uma força que as lentes de Petra não capturaram, mas que segue moldando o país em lógicas de guerra, nas quais o mal está sempre no outro.
*Lucas Nascimento é doutor em Língua e Cultura pela UFBA, pós-doutorado pela USP, Professor da UEFS e autor do livro “O veneno da língua” (Mundo Cristão).
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